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A Abstração em Álgebra
Período: século XIX em diante
Assuntos matemáticos envolvidos:

Até uma época recente, a palavra álgebra designava essencialmente aquela parte da matemática que se ocupa do estudo das operações entre números e fundamentalmente da resolução de equações.

Nesse sentido, pode-se dizer que esta ciência tem despertado o interesse da humanidade desde o começo de seu desenvolvimento cultural. Assim encontram-se rastros de uma álgebra primitiva no Antigo Egito e nas tábuas de argila dos Sumérios: no papiro Rhind se consideram problemas de distribuição de víveres e outras mercadorias que conduzem a equações simples e nos textos cuneiformes da antiga Babilônia encontra-se a clássica regra para a resolução de equações de segundo grau.

A álgebra clássica estudava equações numa situação relativamente concreta. O emprego de letras para designar as incógnitas e os coeficientes de equações permitia dar tratamentos gerais para diversos tipos de equações, mas subentendia-se sempre que estas letras representavam números (naturais, inteiros, racionais, etc) trabalhando-se com estes em forma mais ou menos intuitiva.

Parece claro que os números naturais desenvolveram-se a partir da experiência cotidiana e seu emprego foi-se generalizando gradativamente. Algo análogo aconteceu com os números racionais não negativos. Já com os números negativos a história foi bem diferente.

O primeiro uso conhecido dos inteiros negativos se encontra numa obra indiana, devida a Brahmagupta, em 628 d.C. aproximadamente, onde são interpretados com dívidas. Desde o seu aparecimento estes números sucitaram dúvidas quanto a sua legitimidade. Stifel em 1543 ainda os chamava de números absurdos e Cardano os considerava como soluções falsas de uma equação.

Com os números irracionais aconteceu algo similar. Já na época dos pitagóricos se sabia da existência de segmentos cuja medida não pode ser expressa por um número racional.

Quando a ciência européia discutia ainda a possível validade do emprego de números negativos ou irracionais, irromperam no mundo matemático os números que hoje chamamos de complexos.

André Lichnerowicz assinalou alguma vez que "uma das características fundamentais da matemática é repensar periodicamente seus próprios conteúdos e que nisto radica uma das fontes do seu progresso". O processo da gênese da álgebra abstrata foi, precisamente, dessa natureza.

Numa tentativa para esclarecer os fundamentos da álgebra, o matemático inglês George Peacock publicou em 1830 seu Treatise on Álgebra, onde tenta dar a esta disciplina uma estrutura lógica comparável à dada à geometria nos Elementos de Euclides. Esta obra, que fora ampliada a dois volumes até 1845, marca o inicio do pensamento axiomático em álgebra.

Quando Bombelli introduziu os números complexos, assumiu implicitamente que as propriedades das operações são as mesmas quando se trabalha com os diversos tipos de números. Na mesma linha de pensamento, no primeiro volume, Peacock tenta exibir as leis fundamentais da aritmética, trabalhando apenas com números e dando aos símbolos + e - o seu significado ordinário. No segundo volume, desenvolve uma "álgebra simbólica" e as mesmas regras são aplicadas a símbolos sem conteúdo especifico.

Augusto De Morgan na sua Trigonometry and Algebra de 1830 assume o mesmo ponto de vista, deixando os símbolos sem significação pré-estabelecida e assim, por exemplo, diz que "letras como A, B poderiam representar virtudes ou vícios e os símbolos + e - recompensas ou castigos".

Pelo que parece, Peacock foi o primeiro a perceber que um cálculo formal poderia ser feito sem considerar a natureza dos entes com os quais se trabalha, embora ele pensasse em aplicá-lo apenas a números ou magnitudes geométricas. De Morgan por sua vez, percebeu a total independência do significado dos símbolos. Porém, ambos aceitaram como indiscutíveis as propriedades das operações tal como lhes eram sugeridas pela experiência e não chegaram a perceber que também estas poderiam não ser um dado apriorístico.

Este passo decisivo será conseqüência da obra de um notável matemático irlandês: sir Willian Rowan Hamilton. É interessante ressaltar que sua fama já estava solidamente estabelecida quando veio a realizar sua revolucionária descoberta dos quatérnios.

Neste novo conjunto de "números" a multiplicação não é comutativa, isto é, a ordem dos fatores altera o produto. Resultou assim evidentemente que não existem as restrições impostas pelas "leis fundamentais" sugeridas pelos sistemas até então conhecidos e que pareciam solidamente estabelecidos.

O impacto desta descoberta no mundo matemático foi enorme e muitos autores se dedicaram à procura de novas álgebras não comutativas. Entre estes merece ser destacado Arthur Cayley que, inspirado pelas idéias de determinantes que vinham sendo desenvolvidas desde um século antes, ao estudar invariantes sob certas transformações definiu pela primeira vez a noção de matriz. A sua intensa atividade cientifica na teoria dos invariantes foi compartilhada com outro brilhante matemático, seu amigo James Joseph Sylvester.

No ano seguinte a descoberta dos quatérnios por Hamilton, Hermann Grassman publicou na Alemanha idéias muito semelhantes. Porém, seu livro continha também interpretações místicas e a exposição era talvez abstrata demais para a mentalidade pratica da época. Tudo isso fez com que o trabalho demorasse demais em ser compreendido. É justo destacar que sua geometria de n dimensões e seus hipernúmeros guiaram os matemáticos a várias das noções hoje correntes na álgebra linear.

A maré de publicações sobre as novas álgebras foi enorme. O matemático americano Benjamin Pierce publicou um artigo chamado Linear Associative Algebras, onde estas estruturas são definidas e se classificam as que eram conhecidas até então. O trabalho inclui a tabela de multiplicação de 162 álgebras diferentes, todas elas de dimensão menor ou igual a 6.

Não se pode deixar de citar a obra de outro notável matemático inglês, George Boole que criou uma outra forma de álgebra. Amigo de De Morgan, ele conhecia sua Formal Logic e se interessou desde cedo pela matemática e a lógica. A álgebra de Boole é hoje a álgebra dos conjuntos e certamente encontra muitas aplicações nos campos mais diversos: probabilidades, teoria da informação, análise, problemas de seguros, etc.

Por outro lado, a teoria de equações continuou a se desenvolver e levou à descoberta de outros conceitos que resultaram fundamentos para o desenvolvimento da álgebra abstrata.

Durante o século XVI, matemáticos italianos tinham descoberto fórmulas análogas as que permitem determinar as raízes de uma equação de segundo grau para resolver as equações de terceiro e quarto grau, usando também radicais. Durante muito tempo os matemáticos procuraram uma fórmula semelhante para equações de grau superior sem nenhum sucesso.

Os primeiros passos na direção correta se devem ao matemático francês Joseph Louis Lagrange que, estudando sistematicamente as fórmulas já conhecidas, foi levado a considerar permutações entre as raízes em torno de 1777. Lagrange não resolveu o problema, mas sua obra teve o mérito indiscutido de assinalar a direção correta, preparando o caminho para os seus sucessores. Um trabalho semelhante foi desenvolvido, na mesma época por Van der Monde.

Paolo Ruffini, que se considerava, em certa forma, discípulo de Lagrange, tentou provar que a equação geral de grau superior ao quarto não é resolúvel por radicais mas seus esforços, embora corretos, não foram considerados conclusivos. A primeira demonstração rigorosa da impossibilidade de resolver a equação de quinto grau usando radicais é devida ao matemático Niels Henrik Abel, e até hoje este resultado é um dos mais célebres da matemática.

Dentre as idéias sugeridas pela teoria de equações a mais importante e a que achou um campo de aplicação mais amplo foi a noção de grupo de permutações e a figura que mais se destacou neste contexto é a do matemático francês Evariste Galois que introduziu esta noção em 1832 e explorou algumas das suas propriedades fundamentais.

No período de 1844 a 1846, Augustin Cauchy publicou uma série de trabalhos explorando, ainda mais, as propriedades dos grupos de permutações. Impressionado por estes trabalhos, Arthur Cayley soube reconhecer as idéias gerais por trás do caso particular das permutações e, um artigo de 1854 introduziu a noção de grupo abstrato.

Além da importância óbvia de ter introduzido noções hoje centrais na álgebra abstrata, atribui-se ainda ao trabalho de Galois ter iniciado o caminho que levaria mais tarde Dedekind, Kroneker e Kummer a desenvolver a teoria dos números algébricos.

Muitas foram as contribuições posteriores a este processo de elaboração da álgebra abstrata, que continua ainda em evolução.

 

Alterado em: 22/01/2003
Texto de: Fernanda Buhrer Rizzato; supervisão e orientação: prof. Doutor Francisco César Polcino Milies
Bibliografia:

Compilado em: 26 de Fevereiro de 2008

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